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Empreendedorismo Social em Saúde: A Experiência da Associação Pais e Amigos

Habilitar

Entrevista com a Dra. Carolina Duarte, Pediatra do Neurodesenvolvimento e fundadora da Associação Pais e Amigos Habilitar

Pode contar-nos um pouco sobre si e o seu percurso como médica/pediatra?
Concluí a Formação Específica em Pediatria no Hospital Pediátrico de Coimbra em 2005, onde permaneci até agosto de 2006. Em setembro de 2006 iniciei funções no Serviço de Pediatria do Hospital de Aveiro. A minha atração pelo Neurodesenvolvimento começara no Internato, e em Aveiro tive oportunidade de me dedicar a esta área. Em 2010 foi criada uma Unidade de Neurodesenvolvimento, com uma equipa multidisciplinar muito motivada que coordenei durante 13 anos. Em 2012/2013 realizei o Ciclo de Estudos Especiais em Pediatria do Neurodesenvolvimento.

Quando e como surgiu a ideia de criar a Associação Pais e Amigos Habilitar?
Trabalhei durante 17 anos na Unidade de Neurodesenvolvimento da atual ULS da Região de Aveiro. Segui milhares de crianças, jovens e famílias. Cedo se tornou claro que a minha atividade requeria uma aprendizagem contínua, não apenas centrada nas patologias, mas obrigando a uma visão mais sistémica, sem a qual a intervenção do médico é muito reduzida. As Perturbações do  Neurodesenvolvimento têm impacto em diversos domínios, não apenas na saúde. A filosofia do Sistema Nacional de Intervenção Precoce na Infância e o papel das suas Equipas Locais de Intervenção são o melhor exemplo deste olhar obrigatoriamente abrangente. A articulação com os contextos educativos é obrigatória. Todos os dias identificava potenciais alvo de mudança, fragilidades nos vários contextos. Seria impossível ignorar. Percebi ainda cedo que o médico é uma de muitas personagens; os protagonistas são os pequenos e as famílias.

Que necessidades concretas identificou nas famílias que a motivaram a agir?
Quase que podia transcrever a lista informal que foi crescendo no meu caderno de notas! Famílias com percursos muito solitários, pouco informadas de condições, direitos. Escolas com poucos recursos e com pouca formação nesta área. Ausência de redes de suporte. Falta de comunicação entre os tais domínios que se cruzam. E todos de costas voltadas, sem percebermos que desconhecemos as dificuldades reais, que facilmente julgamos a falha do outro, tornando-nos parte do problema e não da solução.

Como nasceu a Associação? Quem esteve consigo desde o início?
Inicialmente foi criado um Centro Comunitário acolhido pela Santa Casa da Misericórdia de Aveiro (SCMA) que proporcionava intervenção terapêutica específica gratuita a crianças com necessidades urgentes e sem resposta local. Cada plano era desenhado de acordo com o perfil das crianças. E assim chegaram alguns dos primeiros Pais Habilitar. O Centro foi descontinuado por não ser sustentável, mas a estes Pais Habilitar juntaram-se amigos, grandes amigos, para quem esta vontade de ser casa, semear, fazia sentido. E nasceu a Associação, uma ONGPD, sem fins lucrativos, ajudada pela autarquia e por alguns mecenas locais, com muita vontade, mas sempre prudente.

 Quais foram os maiores desafios no arranque do projeto?
Os desafios existem sempre, maiores quando há pouco recursos e a ideia é algo pioneira. Mas o maior desafio é o envolvimento afetivo: o entusiasmo, a dedicação e a expetativa têm que ser doseados; não podemos esperar que os outros se envolvam da mesma forma, nem esta tem que ser a “forma certa”. A dada altura, as barreiras e as frustrações, inevitáveis, têm um impacto desproporcional, que nos desgasta e distrai dos objetivos iniciais. Se voltasse hoje ao início, talvez tentasse gerir de forma mais serena as expetativas.

Que tipo de impacto a associação tem tido nas famílias e crianças que acompanha?
Existe um impacto direto nas crianças e famílias que mantêm algum acompanhamento individual, sob a forma de intervenção terapêutica. Mas o grupo alvo destas intervenções será sempre limitado. Participar em encontros com pais, agentes educativos, terapeutas, entre outros, faz mais diferença na Comunidade. Juntos somos mais eficazes nesta sementeira, representamo-nos a todos enquanto comunidade envolvida, que quer trocar conhecimentos e experiências. Temos realizado cursos acreditados para docentes, múltiplas ações de formação abertas à comunidade, etc, e é muito gratificante.

Houve algum momento ou história em particular que a tenha marcado?
Uma das atividades que a Associação iniciou há dois anos é o Campo de Férias Habilitar; este ano tem lugar terceira edição deste Campo, cuja duração tem vindo a aumentar. Tem como público alvo um grupo crescente de crianças e jovens com e sem Perturbações do Neurodesenvolvimento, é planeado em cada detalhe, tem uma oferta de atividades diversas e envolve uma equipa ampla de técnicos especializados, monitores (selecionados por entrevista criteriosa) e voluntários. A minha participação é quase nula, mas tento estar presente em mais do que um momento. Nessas alturas acredito que tudo é possível! Crianças quase totalmente dependentes, rodeadas de crianças saudáveis, animadas por jovens monitores e voluntários tão envolvidos. Comove-me a alegria de pais que conheço tão bem, o cuidado tão genuíno de crianças e jovens saudáveis, a forma como naquelas semanas aquele pequeno universo cresce de verdade. Nesses dias acredito mesmo.

 Acha que os médicos podem e devem ter um papel mais ativo fora do consultório, em causas sociais?
Penso que, em áreas que envolvem vários domínios, o médico deve tentar ir ao terreno conhecer os vários contextos e trabalhar com eles. Apenas dominamos uma fração do saber; para lá do consultório, há uma realidade ampla e muitas vezes adversa.

Quais são os próximos passos para a Pais Habilitar?
A Associação tem muitas ideias, mas noção dos seus recursos e muita prudência. Gostávamos de juntar mais famílias, sentimos que não nos procuram, que mantêm o isolamento como defesa. O Campo de Férias é algo que queremos ver crescer, ampliar a outros períodos não letivos. A formação na comunidade é sempre gratificante. Mas temos apenas dois elementos contratados, a nossa coordenadora e uma psicomotricista em tempo parcial. A nossa coordenadora tem um contrato comparticipado pelo IEFP, porque tem uma paralisia cerebral… além das suas habilitações que incluem mestrado em Educação Especial e um Doutoramento em Multimédia! Tem uma remuneração tão injusta para o que desenvolve… O nosso elemento mais importante é o espelho da dificuldade na inclusão! E queremos muito divulgar a aplicação que estes dois elementos conceberam, o Hábil. É um instrumento de avaliação e treino muito valioso. Temos muitas ideias, mas somos quase todos voluntários.

Que conselhos daria a colegas médicos que sentem vontade de criar ou apoiar projetos sociais, mas ainda não deram o passo?
É preciso acreditar. É possível fazer a diferença, mas mantendo firme a certeza de que somos um grão de areia da praia (e jamais da engrenagem!). Não detemos o saber, apenas a nossa pequena parte. No mundo cabem muitos pequenos mundos, alguns quase invisíveis; talvez possamos mudar um desses! Mas somos humanos e vivemos rodeados de pessoas. O entusiasmo genuíno nem sempre é bem recebido, confunde-se com vontade de protagonismo; não há sonhos sem uma certa dose de ingenuidade… talvez não pudesse haver. Mas temos que ser prudentes, dosear a
expetativa, não confundir vontade com certeza e, muito importante, rodearmo-nos de pessoas de bem.
Não façam sozinhos, procurem pares; faz toda a diferença.