Atraso de Linguagem
O atraso de linguagem é um dos problemas mais comuns observados em Consulta de Neurodesenvolvimento em idade pré-escolar. Afeta cerca de 10 a 15% das crianças nesta faixa etária e mais frequentemente as do sexo masculino.
Para compreender melhor o atraso de linguagem, é essencial distinguir os conceitos de comunicação, linguagem e fala:
- Comunicação é o ato de trocar informações e emoções com os outros, podendo ocorrer de forma verbal, gestual, por expressões faciais ou até por meio de contato visual.
- Linguagem é o sistema complexo de símbolos, como palavras e gestos, que usamos para representar ideias e conceitos. A linguagem pode ser transmitida de forma verbal (oral ou escrita) e não verbal (gestos, imagens e sons). Engloba dois componentes: a compreensão (linguagem receptiva) e a expressão (linguagem expressiva).
- Fala refere-se aos sons específicos produzidos para formar palavras e frases, envolvendo a coordenação dos músculos da boca, lábios, língua e cordas vocais.
Ao longo dos primeiros dois anos de vida, a criança vai desenvolvendo um conjunto de comportamentos inicialmente pré-linguísticos (sorriso social, vocalizações, gracinhas, apontar, jargão), até começar a produzir as primeiras palavras (12-18 meses) e, posteriormente, a juntar palavras e a formar frases (21-30 meses). Progressivamente, as frases vão-se tornando mais extensas e mais inteligíveis, a criança é capaz de fazer perguntas e comentários. No final do período pré-escolar, aos 6 anos, esta deve apresentar um discurso totalmente inteligível, em que relata e descreve situações, utilizando frases complexas, com correção gramatical e vocabulário extenso.
O desenvolvimento da linguagem é complexo e dinâmico e depende de fatores biológicos, como a integridade dos sistemas sensoriais (audição e visão), do aparelho fonatório/articulatório, capacidade cognitiva da criança e história familiar. Depende também de fatores ambientais.
Apesar da estimulação ambiental não poder ser considerada, por si só, responsável pelo atraso de linguagem, na verdade, a exposição a um ambiente linguístico rico, com atividades lúdicas que envolvam a linguagem, com reduzida exposição a écrans e hábitos de leitura precoces, enriquecem e estimulam o desenvolvimento adequado da linguagem. As primeiras conversas com o bebé começam já no berço!
Principais Causas de Atraso de Linguagem na Criança pré-escolar:
- Perturbações do Neurodesenvolvimento:
As perturbações do neurodesenvolvimento cursam frequentemente com o compromisso da linguagem. Importa destacar três situações distintas:
- Atraso global do desenvolvimento psicomotor (AGDPM)- neste quadro, a criança apresenta uma velocidade de aquisição de competências inferior (mais lenta) do que o esperado para a sua faixa etária, nas diferentes áreas do neurodesenvolvimento (locomoção, linguagem, raciocínio, autonomia). A linguagem é uma das áreas que mais se relaciona com o potencial cognitivo da criança e está, por isso, habitualmente comprometida no AGDPM, com um desempenho concordante com as restantes áreas. Apesar do quadro ser global, é o atraso da linguagem que mais frequentemente motiva a ida à Consulta de Neurodesenvolvimento.
- Perturbação de Linguagem – nesta situação, é apenas a área da linguagem que está comprometida (compreensão e/ou expressão), contrastando com as restantes áreas do neurodesenvolvimento, cujo desempenho estará de acordo com o esperado para a idade. Um ou mais domínios da linguagem poderão estar afetados, por exemplo: o vocabulário (semântica), a construção das frases e regras gramaticais (morfossintaxe), a percepção e consciência dos sons (fonologia) e adequação social do discurso (pragmática). Também pode coexistir dificuldade em produzir corretamente os sons (fonemas) - Perturbação dos sons e da fala (“articulatória”). Quando existem muitas alterações articulatórias, estas podem comprometer a sua capacidade de comunicar eficazmente e de socializar. Muitas vezes são estas alterações articulatórias que alertam os pais e educadores para o atraso de linguagem e necessidade de avaliação em consulta de Neurodesenvolvimento.
- Perturbação do Espectro do Autismo - nesta patologia, os principais défices estão na capacidade de comunicar e interagir socialmente. Estas crianças podem demonstrar menos iniciativa ou necessidade de comunicar, podem ter dificuldade em usar a linguagem de forma eficaz e recíproca e dificuldade em interpretar os gestos, expressões faciais e emoções das outras pessoas. Isso afeta a forma como se relacionam, pois podem ter dificuldade em responder aos outros, em manter uma conversa ou em brincar de forma interativa. Associadamente, apresentam comportamentos repetitivos e interesses restritos e intensos, que podem comprometer a sua integração e interação sociais e sua adaptação a mudanças de rotina.
- Surdez- A audição é essencial para o desenvolvimento da linguagem oral. Apesar do rastreio auditivo neonatal ser, hoje, um procedimento habitual à alta da maternidade, este não consegue identificar todos os tipos congénitos de surdez, além de que esta também pode ser de expressão tardia ou instalação progressiva. É, por isso, importante identificar fatores de risco pessoais e familiares para surdez. As crianças com surdez, até aos 6-8 meses, podem apresentar um padrão de vocalizações semelhante ao dos seus pares, o qual se vai tornando posteriormente mais pobre, não evoluindo para o jargão (fase de vocalizações com a entoação da língua materna que a criança desenvolve antes de começar a formar palavras, típica dos 12-18 meses de idade). Ao contrário das crianças com Perturbação do Espectro do Autismo, as crianças com surdez demonstram uma boa atitude comunicativa, recorrendo frequentemente aos gestos e expressões faciais para comunicar, e às pistas visuais para compreender a informação.
- Condições neurológicas- O atraso de linguagem pode resultar ou estar associado a um conjunto de situações neurológicas, como a paralisia cerebral, acidente vascular cerebral, infecção do sistema nervoso central (meningite e/ou encefalite), traumatismo crânio-encefálico, epilepsia, doenças metabólicas e/ou degenerativas. A regressão da linguagem é sempre um sinal de alarme.
Outros aspetos importantes a reter
De uma forma geral, em cerca de 10-15% das crianças verifica-se um atraso inicial da linguagem expressiva. Contudo, estas crianças apresentam uma compreensão e competências comunicativas e sociais adequadas e ricas, e por volta dos 3-3,5 anos já recuperaram, encontrando-se no nível esperado para a idade. Esta situação é designada por atraso constitucional da linguagem expressiva, existindo por vezes uma história semelhante num dos progenitores. No entanto, só é possível fazer este diagnóstico retrospectivamente, pelo que não deve ser adiado o envio à consulta de Neurodesenvolvimento.
No caso das crianças prematuras, sobretudo as que nascem com menos de 33 semanas de idade gestacional, a avaliação do neurodesenvolvimento, nomeadamente da linguagem deve ser ajustada à idade corrigida, ou seja, ter em conta a imaturidade neurológica decorrente do parto precoce. Contudo, após os dois anos de idade, a linguagem já deve ser avaliada de acordo com a idade real, sendo que este grupo apresenta maior risco de atraso de linguagem e de dificuldades de aprendizagem.
O bilinguismo parental não deve ser responsabilizado pelo atraso de linguagem: estas crianças têm uma atitude comunicativa e compreensão adequadas relativamente aos idiomas a que estão expostos, o seu vocabulário combinado é semelhante ao da criança monolingue, e, oralmente, podem recorrer ou combinar palavras de ambas as línguas.
A ordem de nascimento na família, o freio da língua curto e a gemelaridade não justificam atraso de linguagem.
Diagnóstico e intervenção
O diagnóstico e intervenção precoces do atraso de linguagem são fundamentais para minimizar o impacto a longo prazo no neurodesenvolvimento da criança. As crianças com atraso de linguagem têm um risco aumentado para desenvolver dificuldades na aquisição da leitura, em compreender a informação escrita e escrever adequadamente (dislexia e/ou disortografia), condicionando o seu desempenho e sucesso académico em várias disciplinas. Além disso, as dificuldades de comunicação podem interferir na interação com colegas e professores, com impacto na socialização e integração escolar.
A avaliação da acuidade auditiva é fundamental numa criança com atraso de linguagem. Na idade pré-escolar, a hipertrofia adenoideia e as infecções frequentes no ouvido médio, como a otite seromucosa, podem interferir na capacidade auditiva (surdez de condução). Contudo, a otite seromucosa não deve ser responsabilizada isoladamente pelo atraso de linguagem.
Cerca de um terço das crianças, quando adequadamente identificadas e orientadas, conseguem recuperar. Mesmo quando a recuperação total não é possível, a intervenção precoce melhora substancialmente o prognóstico. O acompanhamento com profissionais especializados, como os pediatras do neurodesenvolvimento, terapeutas da fala e outros técnicos, é essencial para identificar a causa do atraso de linguagem, promover uma intervenção adequada e vigiar a evolução e impacto futuro.
Inês Nunes Vicente, Inês Santos, Teresa Mota Castelo
Sociedade de Pediatria do Neurodesenvolvimento
Março 2025